Hoje (quase) tudo foi mau!
É o desassossego que me crias porque o nosso amor anda à deriva, cheio de medos e incertezas, cheio de solidão e afastamento. Cheio de dois corações fechados à defesa.
Não tenho dormido muito. Não consigo. São os parvalhões dos vizinhos de cima a arrastar o que quer que seja às duas da manhã (um dia destes..). Sou eu que simplesmente acordo agitada... assustada.
Não tenho comido, nem muito, nem bem. Odeio estas datas em só se come comida da boa, porque come-se, come-se, come-se, até enche uns quantos dias assim de seguida, porque sobra sempre a doçaria e é "pecado" deixar estragar. Nos últimos 5 meses, com toda a desilusão da vida ganhei uns 3-4 quilos e odeio isso. Nunca fui grande fã do meu corpo, mas quando tive que comprar "as minhas calças cú 38", passei-me. Estou desanimada. Já te disse que este ano vou envergar fato de banho calção, não há cá naturismo para mim que me sinto balofa. Amanhã regresso ao ginásio mas já sabes como sou, sem paciência, e desistente com muita facilidade.
Hoje quase me perdi; não no sentido de se perder num caminho, se bem que isso também acabou por acontecer, mas perdi-me do meu corpo e da minha alma.
A manhã não começou bem porque como não durmo ligo dois despertadores com meia hora de diferença. O problema nessa meia hora é que é quando devia estar a sair de casa e não a levantar-me. Vale-me que não sou de cremes e pinturas e roupas produzidas (também já desisti disso), senão o atraso não era de 5 minutos...
Cheguei atrasada, a chefe marcou o ponto.
Não passei o turno no papel porque não me apeteceu. Péssima ideia! Desorganizei-me logo.
O Sr. AM tinha falecido às 6:45. Ainda lá estava o corpo. 95 anos de sabedoria, um linfoma e uma semana de dopamina porque as hipotensões não cediam (se calhar não era para ceder não???).
Comi qualquer coisa porque só tinha bebido um iogurte no carro no meio do trânsito do IC19.
Calhou-me a enfermaria das mulheres. Bolas! São horríveis. Muitas! Chatas! Mulheres! Tenho estado sempre com os homens e até já tenho uma relação de empatia com eles... Que treta! Terapêutica do pequeno-almoço... a porcaria do carro não foi reposto outra vez! Assim não dá! Reclamação à chefe! Já não me deve poder ouvir!
A L, um amor, dá-me os banhos.
A D. I (caso social porque a filha não a quer levar para casa e ela não quer ir para casa da nora), não quer fazer levante e começa aos berros a chamar pela enfermeira e eu à frente dela. Não sou tolerante com histerismos! Depois de um berro meu, lá se calou. (Sim, enfermeira de merda que sou!).
A D. A com taquicárdia, vai de bólus de amiodarona, monitorização e perfusão a seguir e como a Sra Dra tem medo que entre em paragem (mas "não é para fazer nada"), quer que seja deitada novamente no leito.
Várias tentativas para avisar a família do Sr AM sem sucesso.
Não me sinto bem. Sinto-me fraca e não consigo escrever. Tenho as mãos a tremer.
TA 120/88. Normal? Não! Elevada porque o normal é nos 90/50!
Dei um banho com a L à doente infectada que é do R mas como ele é um encosta... nem olhou para ela e depois na passagem de turno andei eu a passar o que ele não passou!
Chega a filha do Sr AM e interpela-me no corredor. O meu pai não está ali! Não me diga que morreu! Bolas não é suposto ser eu a dar estas notícias! Venha comigo. Toco-lhe ao de leve no ombro. Já percebeu! "O seu pai piorou durante a noite e veio a falecer de madrugada. Fizemos várias tentativas de contacto para o número que nos disponibilizaram mas ninguém atendeu." Descanso e desilusão porque queria ter estado presente. Acalmei-a. Felicitei-a pelos bons cuidados que tinha prestado até então. Disponibilizei-me.
Terapêutica do almoço. Comecei. Com tonturas e sem força. Chamam por mim: S anda! Doente em paragem na sala dos homens. 83 anos, neo gástrica disseminada. Já ia tudo com o carro de urgência. Eu, elemento mais velho no momento falo com o médico assistente e pergunto o que quer, ele diz que não reanima e eu mando-lhes um berro a todas as que já se estavam a stressar para parar. Mais de meia hora para terem a certeza!
De volta à medicação. Carro sem coisas. Este isto, aquele aquilo... Blá, blá, blá.
Encontro a esposa do Sr JS. Neo do pâncreas metastizado. Voltou alguns dias depois da alta. Estado geral muito piorado. Hoje... vigil, mas... A mulher muito chorosa. "O J hoje não está bem." "Como acha que ele está?" "Não está bem." "O que espera que aconteça?" "O que acha que vai acontecer?" "O que tem dito a médica?" " Que está mal!" "Sabe que a situação pode piorar mas como tem visto o Sr J está traquilo e sem sinais de sofrimento" "Mas eu estou a sofrer tanto"
Acabo a medicação 2 horas depois de iniciar. Ainda me sinto mal.
TA 144/88. A subir... Merda!
Passo o turno.
Escrevo notas fora de horas.
Falo com a chefe sobre tudo e nada.
Ouvimos gritos de choro.
O Sr J faleceu. Com a família.
Estão à entrada do serviço. Tenho que passar por lá para sair. Bolas! Porque falei com ela?
Mal me vê "você bem sabia que ele morria!". Só lhe consigo dizer "Conversei consigo hoje como poderia ter conversado noutro dia qualquer!" "O mais importante é que ele morreu em paz e acompanhado dos que mais o amavam e sei que isso também é importante para si"
Entro no carro com as lágrimas presas na garganta. Hoje não respiro.
Dizes-me para ir à praia. São quase 18 horas. Bolas o meu horário de saída é às 16!
Saio. Perco-me no caminho que quero seguir.
Ainda não almocei.
Desisto.
19 horas ainda no trânsito.
Oiço-te na minha cabeça "vai à praia"
E vou.
Sento-me. Como.
Água, terra, mar e fogo.
Finalmente sinto-me a respirar.
Um pouco de paz.
O Sol esperou por mim.
Sinto-me melhor.
Agora aqui, à espera que me ligues a contar como foi a tua primeira aula de yoga. Pelo sms pareces-me apaziguado. Foste tocar guitarra.
Precisei falar-te de hoje assim, apesar dos sms do dia.
Estamos quase a fugir daqui.
Ainda estão as lágrimas presas mas já não há mal estar físico.
Espero-te.
Com medo.
Com tristeza.
Com a sensação de um dia terrível.
Sabendo que não fui uma boa enfermeira, porque não estou preparada. Porque preciso de uma cama de hospital. EU!